Maria Bonita foi a primeira mulher a entrar no cangaço. Antes dela, os cangaceiros cultuavam o tabu de que a presença da mulher no grupo desencadearia seu fim. Os homens perderiam a força e a proteção. Ficariam à mercê dos seus inimigos e vulneráveis às suas armas pelo o desaparecimento dos predicados do corpo fechado. Era a tradição medieval dos cavaleiros e templários que mantinham a castidade como forma de preservarem as virtudes de guerreiros e nobres e principalmente a invencibilidade. Maria Gomes de Oliveira, nasceu em 8 de março de 1911 na fazenda Malhada da Caiçara da localidade Santa Brígida, hoje município baiano de Paulo Afonso. Seus pais José Felipe de Oliveira e Maria Joaquina da Conceição, conhecida por Déia tiveram muitos filhos. Só homens foram cinco. Mulheres foram oito.
Como toda menina do sertão nordestino, Maria casou ainda adolescente com um sapateiro das vizinhanças, José Miguel da Silva, José de Neném, com quem não teve filhos, pela alegada esterilidade do parceiro. A vida de casada não transcorria bem. O casal vivia em brigas e vez por outra, Maria aborrecida com o marido, ia passar uns dias na casa dos pais.
Numa dessas vezes, no final do ano de 1929, o pequeno povoado de Santa Brígida foi surpreendido com a presença de Lampião que com um reduzido bando entrara no território baiano. O encontro ocasional dos dois despertou uma atração mutua e Lampião, sem outro pretexto, sabendo dos seus predicados como costureira encomendou uns lenços bordados para o pescoço. Por quase um ano, e sempre que passava por aquelas redondezas Lampião dava um jeito de visitá-la e um namoro ingênuo, como era comum no sertão daquele tempo, acabou acontecendo. No principio de 1930, Lampião resolveu levá-la consigo, contrariando todos os conselhos de que a presença de mulher no grupo seria o principio do fim. Não foi. O romance durou 8 anos até a emboscada fatal de Angico em Sergipe.
Naquele mesmo ano de 1930, Maria engravidou pela primeira vez e teve um filho natimorto. Provavelmente a má alimentação, a vida errante de perseguições e combates tenham contribuído para a perda do filho. No outro ano, estava grávida novamente e desta vez teve uma menina, nas terras da fazenda Exu, município de Porto da Folha em Sergipe, em 13 de setembro de 1932, assistida pela parteira Rosinha sob um pé de umbu. Em 4 de outubro, liberada do resguardo da mulher e por questão de segurança, Lampião teve que partir, entregando a filha recém-nascida ao vaqueiro Severo Mamede e sua esposa, Aurora, que poucos dias antes também tivera uma filha para criarem a menina como filha e que recebeu o nome de Expedita.
Maria ainda engravidou mais duas vezes, abortando espontaneamente. Somente lhe sobreviveu a filha Expedita, hoje com 78 anos.
A presença de mulheres nos grupos de cangaceiros foi detectada a primeira vez pela Policia, quando após o combate de Favelas na Bahia, foram encontrados entre os pertences abandonados pelos cangaceiros, lenços perfumados, nitidamente de uso feminino, conforme registro no jornal A Tarde de Salvador em 5 de abril de 1930.
Maria de Déia, Maria do capitão, Maria de Lampião ou dona Maria eram os nomes como os companheiros a conheciam. Adotou uma estética diferente da dos homens, mas usando praticamente as mesmas cores como camuflagem para o meio ambiente em que viviam. Cores terrosas, marrons, cinzas, caquis, todas parecidas com as cores das caatingas. O toque feminino estava nos enfeites e bordados. Os vestidos eram sempre retos com decote alto e mangas compridas. Proteção do sol e dos espinhos do mato por onde andavam. Detalhes eram costurados como faixas na barra da saia, na cintura e ao redor do busto. Bolsos com aba para fechar e botões. Embornais ornados de detalhes geométricos, rosáceas, cruzes latinas e signos-de-salomão. Os chapéus não tinham a forma dos que os homens usavam, de aba revirada. Tinham aba reta e eram de flanela, mas ostentavam medalhinhas e medalhões na testeira, e no barbicacho.
Sob o chapéu havia sempre um lenço para cobrir os cabelos que habitualmente permaneciam presos por frisos e fitas. O restante do equipamento era rústico e utilitário. Canecas, colheres, punhal e uma arma de fogo dessas calibre 22 apenas para proteção. Não participavam dos combates. Apenas começado o tiroteio, eram levadas por um companheiro para um lugar distante e ficavam sob guarda e proteção. Quando feridas por uma bala perdida eram carregadas nos braços por um companheiro até a casa de um coiteiro para serem tratadas. Quando grávidas tinham toda a proteção, mas não podiam ter moleza. Seguiam o mesmo ritmo das retiradas, muitas vezes às pressas, fugindo da Policia.
Os partos eram feitos nas casas dos coiteiros ou no meio do mato, abrigados num suvaco de serra ou sob uma árvore frondosa que desse sombra e proteção.
Maria Bonita foi um nome de grife dado pela Policia. Coisa prá inticar com Lampião e despertar seu ciúme. Na verdade, na intimidade ele chamava Maria de Santinha.
Maria foi ferida superficialmente algumas vezes, nunca na frente de combate. Em 20 de julho de 1934, no mesmo dia em que no Juazeiro do Ceará padre Cícero morria, Lampião atacou a vila Serrinha de Catimbau perto de Garanhuns em Pernambuco e Maria foi baleada nas nádegas. Maria Ema, outra mulher do grupo também foi ferida. Foram tratadas por uma curandeira das redondezas. Parece que esse foi o único ferimento mais grave da mulher de Lampião, que tinha uma pistola tipo mauzer para sua proteção.
Maria sempre teve ascendência sobre o marido. Discutiam como todo casal, mas nunca sofreu uma agressão por parte do companheiro. Contam que fugindo da Policia e se escondendo no meio da caatinga, com um recém-nascido nos braços Maria foi incapaz de fazer o filho parar de chorar o que era perigoso tendo em vista a proximidade da volante.
Todos tinham que manter silêncio, mas a criança teimava em chorar. Lampião chateado determinou a mulher que fizesse o filho parar, mas Maria não conseguia. Lampião então, num rompante de autoridade mandou que os companheiros matassem a criança, com reação enérgica de Maria que soltou o verbo com toda a sorte de impropérios, desafiando o chefe a fazer cumprir o que determinara. Lampião recuou da decisão, reconhecendo o zelo da companheira e ainda comentando aos outros que “mulher choca, nem o diabo enfrenta”, alegando o estado puerperal da mulher.
Um compadre de Maria, José Gomes dos Santos, chamado José Fulô, natural dali mesmo de Santa Brígida, por ser amigo do seu ex-marido, José de Neném, vivia comentando nas feiras que era um despropósito sua comadre ter deixado o marido por um cangaceiro. Sabedor da história, Lampião determinou que se algum conhecido soubesse do paradeiro de Fulô, que o segurasse que ele queria ter uma conversa com ele. Não deu outra. Em 25 de novembro de 1935, José Fulô teve na feira de Chorrochó e pediu arrancho na casa de Antonio Mocó que era unha-e-carne com o chefe dos cangaceiros. Foi aprisionado enquanto saia um positivo com um recado pra Lampião. Que o homem tava preso que ele viesse tomar as satisfações. Somente em 2 de dezembro Lampião conseguiu chegar no lugar e danou-se a bater em José Fulô, torturando-o de todas as formas. Vendo que ia acabar sendo morto, José Fulô pediu proteção a Maria, alegando sua condição de compadre. Não precisou pedir duas vezes e ela interferiu valentemente pelo fofoqueiro que acabou sendo perdoado por Lampião que ainda mandou ele pedir a benção “a sua madrinha”, pela vida que ele poupara.
Outra demonstração do espírito guerreiro de Maria Bonita aconteceu em 1936 quando um grupo incluindo Gato e sua mulher Inacinha no 7º mês de gravidez e Maria mais Corisco, Dadá, Virginio, Portugues, Manoel Moreno, Pancada e Maria, Chumbinho e outros, num total de 16, estando arranchados na fazenda Retiro em Alagoas, foram emboscados por uma volante do tenente Bezerra. O tiroteio foi grande, mas Inacinha foi baleada no quadril e na perna, ficando sem condição de fugir. Presa pela Policia, foi levada para Piranhas. O companheiro Gato, desesperado, junta sua tropa e segue para Piranhas para resgatar a companheira ferida e grávida. Da fazenda Retiro até Piranhas, matam 10 pessoas. Na cidade, são recebidos a tiros, mas resistem, tendo como trincheira, algumas casas do começo da rua. Em Piranhas conseguem matar mais duas pessoas. O telegrafista e um adolescente de 15 anos. Num dado momento, Gato foi baleado gravemente e foi dada a ordem de recuar. O ferido foi transportado sentado numa cadeira de vime, levada por Maria Bonita e Dadá de Corisco sob intenso tiroteio. Os cangaceiros recuam para a fazenda Mogiana, onde Gato agonizante pediu a Maria para fazer um cigarro de fumo bem fininho prá ele pitar, mas morreu antes.
Em 17 de abril de 1938, Maria Bonita e Lampião com mais seis companheiros saem da fazenda Borda da Mata, de Antonio Caixeiro, município de Canhoba em Sergipe, e sobem até Gararu onde atravessam o rio São Francisco no rumo das Alagoas. Era uma noite estrelada. Lampião apressa uma embarcação que fazia a travessia do rio e obriga o barqueiro a levá-los até o outro lado. Na embarcação também viajava uma banda de jazz que ia até Pão de Açucar prá tocar numa festa. Lampião, num gesto inusitado pediu que tocassem “O tango da vida.” Após a exibição, Lampião deu uma gorjeta de 50 mil réis para cada um, desembarcando no Saco dos Medeiros, município de Traipú em Alagoas. Foi o ultimo ato oficial antes da emboscada de Angico.
Em 21 de julho, Luis Pedro, Juriti e outro cabra interceptaram um portador de Corisco que levava Cristina, ex-companheira de Portugues para junto de sua família em Propriá. Cristina traia o companheiro com Gitirana, um cabra de Corisco. Descoberta, foi poupada por interferência de Lampião e Maria que mandaram que os dois chefes cuidassem, cada um, dos seus. Cristina ficou com Portugues, mas na primeira oportunidade fugiu atrás de Gitirana. Corisco não gostou de sua presença e determinou sua devolução à família em Propriá, encarregando como portador um vaqueiro do velho Bilé da fazenda Emendadas. Nesse 21 de julho, Cristina saiu com o vaqueiro, prá viagem, mas foi interceptada pelos homens de confiança de Lampião que alegando necessidade de guardar segredo, mataram-na a punhal. Contrariado, Corisco ficou agastado com Lampião, razão pela qual não se dirigiu imediatamente para o ponto em Angico onde Lampião chegaria em 23 de julho.
Lampião estava descansando numa das fazendas de Antonio Caixeiro, pai do capitão-médico da PM sergipana Eronildes de Carvalho interventor do Estado de 1935 a 1941. Para acertar detalhes de estratégia, mandou avisar aos seus chefes de grupos, Corisco, Zé Sereno, Angelo Roque que tinham um encontro no Angico, município de Porto da Folha naquela semana. Em 23 de julho ele chegou com sua mulher e um grupo reduzido ao lugar, recebendo Zé Sereno e Angelo Roque.
Na noite de 27 de julho, Maria chamou Sila prá conversar e fumar afastadas das tendas de abrigo. Haviam comido uma melancia madura que Pedro de Candida havia trazido junto com as compras da feira. Escoradas numas pedras, as duas prosearam até tarde da noite. Maria reclamava da vida difícil de correrias e perseguições. Preferia um lugarzinho tranqüilo com o companheiro prá ter e criar seus filhos, mas Virgulino não aceitava, alegando que já estava desgraçado e a Policia nunca iria deixá-los em paz.
Naquela prosa, Sila viu algumas luzes piscando no mato. Maria achou que eram os lampejos de vagalumes. Na verdade eram as lanternas à pilha da Policia, formando o cerco.
De madrugada, estando o aspirante Ferreira com um pequeno grupo, fechando a entrada do vale, atrás de umas pedras que formavam um tanque d’água e bem diante das tendas onde dormiam os cangaceiros, viu quando Lampião acordou e se espreguiçando mandou Amoroso ir buscar água prá coar café. O cangaceiro, com uma cuia de lata de queijo do reino veio na direção da tropa do aspirante, mal encoberto pela escuridão da madrugada. Diante dos policiais escondidos nas pedras, separados por apenas uns dois metros, Amoroso resolve urinar. Na iminência de serem descobertos, os policiais começam a atirar. O primeiro a morrer foi Lampião. Maria correu em sua direção para acudi-lo e foi baleada, caindo sobre o companheiro. De repente ela firmou os braços no chão e tentou levantar-se. Estava apenas baleada. Viu quando Luis Pedro e um grupo de companheiros estava conseguindo escapar do cerco.
Lembrou-se de cobrá-lo da promessa que fizera a Lampião em novembro de 1926, quando acidentalmente matara seu irmão Antonio. “Compadre Luis, você não disse que no dia que Lampião morresse você morria também?” E Luis Pedro voltou. Na mesma hora um policial avisou que Maria ainda se mexia, viva. Outro tiro acertou-a e um volante correu prá degolá-la.
Luis Pedro que voltara acudindo a alegação de Maria, foi baleado nos peitos, mas não se entregou. Fez um movimento de sacar sua pistola, mas outro tiro acabou com sua vida. Um policial avistando aquele cangaceiro todo ajaezado, com as mãos cheia de anéis, com terêrês de aliança e jóias de ouro nos cabelos, pensou que tratava-se de Lampião.
Cortou sua cabeça e suas mãos para depois despojá-las dos anéis.
A cabeça de Maria Bonita, Luis Pedro e mais seis companheiros foi guardada em latas de querosene com sal e trasladadas para Piranhas e daí por todo o calvário de cidades até Aracaju.
Depois foram para o museu Nina Rodrigues na Bahia e somente sepultadas em 1969, 31 anos depois.
* Iaperi Araújo é da Academia Norte-riograndense de Letras, dos Institutos Histórico e Geográfico do RN e Goiás, da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço e Presidente da Associação Brasileira de Medicina Popular e Natural.
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